Sem título
Compartilhe
UM DIA NÓS
SEREMOS QUAL CIF? As Deficiências e sua(s) Classificação(ões)
Texto do
Blog InfoAtivo.DefNet - Jorge
Márcio
Como parte
de uma videoconferência a ser realizada estou retomando o tema da Classificação
Internacional sobre Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, a CIF, criada pela
OMS (Organização Mundial de Saúde), lançada em 2001. Mais uma classificação que
tem por objetivo: “proporcionar uma linguagem unificada e padronizada, e uma
estrutura que descreva a saúde e os estados relacionados à saúde”.
Se nos
preocuparmos com sua utilização, em complementação a CID-10 (Classificação
Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde), poderemos entrar no
campo do futuro das mudanças de paradigmas quanto às Deficiências.
As
diversas e diferentes formas de ser e estar com uma ou mais deficiências têm
gerado, há muito tempo, a construção de meios de codificação e quantificação
estatística de suas realidades no mundo. Nosso último Censo do IBGE nos deu
mais um empurrão para que retomemos a discussão sobre o que é, ou melhor, o que
são as deficiências (?).
A
"gestação" e construção da CIF se deram pela incompletude e pela
visão puramente biomédica e fisicalista da sua antecessora classificação de
pessoas com deficiência: a CIDID (Classificação Internacional das Deficiências,
Incapacidades e Desvantagens). Este manual foi publicado originalmente em
inglês, em 1980 e, subsequentemente, traduzido em mais de doze línguas.
Encontramos
na CIDID a referência a três classificações distintas, cada qual relacionada
com uma consequência diferente de doença. Está aí a concepção que ainda
atravessa milhares de mentes, de instituições e de práticas do cuidado e das
tecnologias para pessoas com deficiência.
Estas
construções de conceitos foram: (1) - Deficiências (em inglês ‘impairments’)
que dizem respeito à perda ou anormalidade de estrutura de estrutura ou função
psicológica, fisiológica ou anatômica. Em princípio, as deficiências
representariam distúrbios no nível do órgão.
O código a
classificava apenas com dois dígitos antes e um dígito após um ponto decimal.
Era a aplicação do mesmo modo classificatório já existente na CID. E seu
fundamento era da pré-existência indispensável de uma doença que levasse à
deficiência. Eis a base do modelo reabilitador.O defeito está e era do sujeito.
O segundo
conceito (2) era o das Incapacidades (em inglês, ‘disabilities’) que
refletiriam, segundo o CIDID, as consequências das deficiências em termos de
restrição ou falta de habilidade para realizar uma atividade de uma maneira ou
dentro da amplitude normal para o ser humano. Nesta visão as incapacidades
refletem distúrbios no nível da pessoa.
O terceiro
conceito (3) era o das Desvantagens (em inglês, ‘handicaps’) que seriam as
resultantes ou de uma deficiência ou de uma incapacidade, dentro de uma
linearidade de resultados. Estas chamadas desvantagens limitariam ou impediriam
o cumprimento de um papel que é ‘’normal’’ (dependendo da idade, do sexo e de
fatores sociais e culturais) para um indivíduo.
Os
chamados ‘’handicaps’’ foram uma construção a partir de uma visão
preconceituosa. O termo deriva da sua colagem, em inglês, com o termo ‘’deficiente’’
(carente, imperfeito, defeituoso, insuficiente, inválido), como uma provável
perda de capacidade ou função do corpo.
Corresponde
ao termo ‘’hand in cap’’, com a mão no boné, um costume dos países
anglo-saxões. Os cavaleiros ou jóqueis mais cotados, em corridas de cavalos,
eram obrigados a correr com o boné na mão, portanto tinham de competir com uma
(1) só mão. Era a desvantagem...
Daí
derivou, há alguns anos atrás, as concepções que nos tornava ‘’portadores’’.
Segundo Elio Sgreccia, em seu Manual de Bioética: “A desvantagem no campo
médico significa que o portador de deficiência, física ou mental, é considerado
como um usuário a meio caminho dos serviços médicos...”. O autor completa ainda
que serão considerados doentes apenas nas fases agudas ou por causa de outras
doenças específicas.
Essa
concepção ainda permanece atravessando a ruptura e a transição de paradigmas
que vivenciamos. Ainda muitos serão chamados de “portadores”, “pessoas com
necessidades especiais”, “excepcionais”, “incapazes”, “inválidos”. Estas
terminologias trazem subjacentes as ideologias que fundamentaram o modelo
biomédico e o modelo reabilitador. É preciso que existam os ‘’doentes e seus
corpos’’ para que possamos então ‘’classificá-los’’, identificando sua
diferença como doença.
Como
ultrapassar o modelo biomédico de deficiência? A possível mudança radical, em
processo desde 2001, é a aplicação da nova Classificação Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, que traz uma ênfase na saúde.
A
afirmação de sua mudança de paradigmas, radicalmente, será sair dos modelos
que, ainda são puramente médicos e centrados na doença e nos sujeitos
considerados doentes. Mas, mesmo ela carecerá de uma vigilância ética e
bioética de sua a aplicação.
No próprio
manual editado pela OMS há a indicação desta questão. Estabelecem as seguintes
diretrizes éticas para a utilização da CIF:
1) A CIF
deve ser utilizada sempre de maneira a respeitar o valor inerente e a autonomia
dos indivíduos.
2) A CIF
NUNCA deve ser utilizada para ROTULAR AS PESSOAS ou identifica-las em termos de
uma ou mais categorias de incapacidade (aí prefiro o termo Deficiência).
3) Na
clínica, a CIF deve ser sempre utilizada com o conhecimento pleno, cooperação e
consentimento das pessoas cujos níveis de funcionalidade estão sendo
classificados. Se as limitações da capacidade cognitiva de um indivíduo
impedirem este envolvimento, as instituições de apoio ao indivíduo devem ter
participação ativa.
4) As
informações codificadas pela CIF devem ser consideradas informações pessoais e
sujeitas às regras reconhecidas de confidencialidade apropriadas segundo a
forma como utilizados.
Por estas
diretrizes é que esta “nova” classificação deverá ser tornada motivo de ampla e
imprescindível discussão, debate, apropriação e difusão. Ainda é uma forma de
classificação que precisa de muitas reflexões, principalmente na sua aplicação
na formulação de políticas públicas para pessoas com deficiência. Afinal, somos
agora mais de 45 milhões de brasileiros e brasileiras (Censo IBGE).
Os campos
da Saúde, da Educação e da Assistência Social estão, aqui e em outros países,
fazendo a progressiva capacitação de seus peritos médicos, assistentes sociais
e educadores. Porém, como já foi alertado temos de cuidar para que não se torne
apenas uma extensão da aplicação ‘’numerológica’’ que se faz da CID. Tornou-se
uma naturalização darmos um número às doenças e aos doentes.
É muito
mais fácil, menos complicado, menos complexo, e, quem sabe sem muitas
implicações éticas, a aplicação de um código ao mal-estar, sofrimento ou
enfermidade desses Outros. Nomeamos um número e uma doença. Não teremos de
cuidar de todas as questões de seu contexto sócio, politico e econômico com os
principais geradores de seu quadro.
Para a
aplicação da CIF é lembrado que “todo ser humano pode experimentar problemas de
saúde e, consequentemente, alguma incapacidade, (dentro dela alguma
deficiência, limitação ou restrição de atividade), delas decorrentes...”.
Esta
mudança sai do modelo que busca só as causas (etiologias) para o surgimento de
incapacidades, busca também a presença de seu impacto e dos fatores contextuais
que se modificam com os múltiplos e plurais estados de saúde.
Saímos da
CID em direção a CIF, que, com certeza, também será ultrapassada um dia. E, aí
quem sabe, qual será minha nova codificação, minha nova ‘’patologia’’,
‘’defeito’’, ou, quiçá ‘’diversidade funcional’’?
Porém tudo
isso dependerá de uma mudança de nossos paradigmas. E, apesar de todas as
‘’revoluções’’ e ‘’primaveras’’, há sempre novas barreiras em construção. As
mais recentes dizem respeito à Educação Inclusiva, onde um novo decreto
retrocede alguns anos de conquista, saindo do ‘’forno legislativo’’ antes mesmo
de ser mais bem apresentado para as massas que por ele podem ser afetadas.
Por isso,
pela afirmação de que não bastam termos novas formas de classificar as
deficiências, é que teremos de romper com a visão medicalizada, reabilitadora e
assistencialista das pessoas com deficiência e seus direitos. A eficácia de
normas ou de políticas públicas depende também de mudanças culturais e de
mentalidade. Caso contrário mantemos, com re-institucionalização, o passado que
pretendemos deixar para trás.
Houve um
tempo, desde os séculos XVIII e XIX, que o chamado biopoder com suas práticas
disciplinares, buscava a docilização e o adestramento dos corpos. Nascia a
biopolítica, segundo Foucault, em consequência das instituições (hospitais,
escolas, prisões, fábricas, casernas, etc..) com a visão do corpo como
‘’máquina’’. A mesma máquina, a ser aperfeiçoada, segundo as visões
“científicas” da Frenologia e da Eugenia...
Hoje já
temos os nossos corpos capazes de serem movidos por exoesqueletos. Somos
trans-humanos? Nossas incapacidades, deficiências ou limitações de participação
podem simplesmente desaparecer. São as biotecnologias em pleno avanço, tanto
para o bem como para o mal...
Estamos no
tempo das células tronco que podem mover, mesmo que 100 metros, um paraplégico
na Bahia. Estamos na nova Era da Idade Mídia. Mas, sem ruptura dos velhos
paradigmas podemos nos tornar tão engessados como os cruzados em sua guerra santa,
acreditando, mistificadamente, que os nossos castelos ideológicos são
inexpugnáveis e indestrutíveis.
Retomo,
então, a necessidade de uma ampliação de conceitos, terminologias ou de
classificações acerca e dentro das deficiências. E, nessa busca crítica,
poderemos aprender a refletir e ampliar o uso de todas as ferramentas, todas as
legislações, todos os instrumentos de poder.
Há sempre
a possibilidade de ir além, de subverter e de transformar, individual e
coletivamente, o que se considerar nossa atual realidade, principalmente no
campo das políticas sociais. Nesse campo a CIF pode ir além de todas as CIDs.
Nessa ação
micro e macropolitica podemos afirmar a nova visão em Direitos Humanos que
embasa nossa melhor conquista do século XXI: a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.
Para que,
enfim, possamos ter uma real e efetiva mudança de paradigmas, com a perspectiva
de que dois modelos de deficiência podem coexistir, um tradicional
(biomédico/reabilitador) e pelo menos um novo (social e biopsicossocial), vamos
propor revoluções ‘moleculares’. Elas, que ainda estão se processando, devem
ser estimuladas para que continuemos sonhando com uma grande revolução molar
dos conceitos e preconceitos sobre a deficiência.
Continuo,
continuemos, interrogando: um dia, no futuro, qual será o meu número na CIF? E
o seu? Será que, com as multidões e massas que revolucionam todos os dias as
redes sociais, produzindo novas e intrigantes cartografias, conflitando os
discursos totalizantes ou universais, haverá o nascimento de um para além de
todas as classificações?
Então, os
nossos olhos não serão mais que olhos. Veremos também pelas janelas da alma. As
estruturas do olho, como na CIF pelos códigos de s 210 a s 230, serão muito
úteis para outro Censo. O senso da sensibilidade das diferenças, das
heterogeneidades, das multiplicidades e das pluralidades do que se chama de ser
humano, ESSA ALTERIDADE INDIZÍVEL E INCOMENSURÁVEL, SEM CLASSIFICAÇÃO POSSÍVEL.
(Este
texto foi escrito especialmente para ser difundido no SEMINARIO OS DIREITOS DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, promovido pelo GEDEF – Ministério Público da Bahia,
Salvador, BA, nos dias 28 e 29 de novembro de 2011, com minha participação, à
distância, por videoconferência com o tema: “A importância da adoção da
Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF, para
classificação das deficiências e inclusão social das pessoas com
deficiências.”)
“Los
derechos que no se garantizan igualmente para todos y todas, se convierten en
privilégios”
(frase no
livro de Pilar de Samaniego Garcia Capítulo VI- Hacia una Educación Inclusiva –
resultado de uma séria pesquisa na América Latina sobre a inclusão escolar de
pessoas com deficiência).
Copyright
jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o autor e as fontes em republicações
livres pela Internet ou em outros meios de comunicação de massa)
FILME
citado no texto-
JANELA DA
ALMA – (2001) – João Jardim e Walter Carvalho (Direção) – Sobre o olhar, o ver,
o enxergar e o ir além desta janela..., e além de nossas ‘’cegueiras brancas’’.
http://www.youtube.com/watch?v=56Lsyci_gwg
(sem legendas)
http://video.google.com/videoplay?docid=1046435147561692538#
(com legendas em francês)
http://www.interfilmes.com/filme_13649_janela.da.alma.html
(dvd sinopse)
Sobre
FRENOLOGIA - http://pt.wikipedia.org/wiki/Frenologia
Livros
indicados:
Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), Editora da
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2003.
Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde (Décima
Revisão) – Volume 2 - Manual de Instrução (OMS – Centro Colaborador da OMS para
a Classificação de Doenças em Português – Universidade de São Paulo) EDUSP, São
Paulo, SP, 2001.
Manual de
Bioética – II – Aspectos Médico-Sociais, Elio Sgreccia, Edições Loyola, São
Paulo, SP, 1997 (2ª Ed 2004).
Leia
também no BLOG –
AS
DEFICIÊNCIAS E O KAMA SUTRA - Algumas aproximações e distanciamentos
http://infoativodefnet.blogspot.com/2009/12/imagem-foto-de-evgen-bavcar-fotografo.html
UMA LUZ NO
FIM DO LIVRO –
http://infoativodefnet.blogspot.com/2010/09/uma-luz-no-fim-do-livro.html
O MELHOR É
A JAULA OU O GALINHEIRO? Deficientes intelectuais e o seu encarceramento
http://infoativodefnet.blogspot.com/2011/05/o-melhor-e-jaula-ou-o-galinheiro.html
INCLUSÃO/EXCLUSÃO
- duas faces da mesma moeda deficitária?
http://infoativodefnet.blogspot.com/2011/02/inclusaoexclusao-duas-faces-da-mesma.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu Comentário é muito importante para nós.