Médico sueco conta como se tornou o primeiro tetraplégico a ter um filho
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Em
15 junho de 1984, um mergulho mudou definitivamente a vida do sueco Claes
Hulting, 58 anos. Ao cair na água, ele bateu a cabeça contra o concreto de uma
obra que estava encoberta pela maré. Seu pescoço foi partido na altura da sexta
vértebra cervical, o que o deixou tetraplégico.
Hulting era um anestesiologista de 30 anos com casamento
marcado para dali a duas semanas. Só não morreu afogado aquele dia porque
amigos o resgataram. Foi transportado no mesmo helicóptero em que costumava
prestar socorro a vítimas de acidentes e levado ao hospital onde trabalhava.
Devido à sua profissão, sabia exatamente o que tinha ocorrido. Ele e sua
mulher, Barbro Fogström, também médica, tinham plena consciência dos danos
causados pelo choque com a cabeça, e decidiram manter o casamento, cuja cerimônia
foi realizada no dia planejado — no hospital.
O acidente representou também uma guinada profissional.
Meses depois, de volta ao trabalho, percebeu que não poderia continuar como
antes. “Eu precisava me dedicar a pacientes com lesão medular”, lembra. Foi,
então, trabalhar em um centro de reabilitação na Austrália e visitou projetos
em outros países, até retornar à Suécia com a ideia de fundar um centro de
apoio modelo para paraplégicos e tetraplégicos.
Seu objetivo se tornou realidade em 1991, quando a Fundação
Spinalis foi aberta em Estocolmo, graças, principalmente, a doações. A
instituição já atendeu 1,2 mil pacientes com lesão medular. Eles passam por um
programa de três meses e depois fazem visitas periódicas para acompanhamento.
“Nós os ensinamos a dirigir, se vestir, ir ao banheiro, fazer sexo, mas,
principalmente, os encorajamos a seguir com suas vidas”, descreve. Dos cerca de
140 funcionários da Spinalis, 22 são cadeirantes, que servem de modelo para os
pacientes.
O maior exemplo que essas pessoas podem ter, no entanto,
parece ser o próprio Hulting. O médico parece ignorar os limites e persegue
objetivos com determinação ímpar. Hoje, ele é autor de estudos sobre a saúde de
pessoas com paralisia, tem livros publicados (incluindo um sobre culinária, com
receitas saudáveis e simples, que podem ser preparadas por seus pacientes) e
nunca parou de praticar esportes — sua página no Facebook exibe uma foto dele
em uma bicicleta movida com os braços.
Seu maior feito, porém, chama-se Emil, seu filho de 19
anos. Hulting foi o primeiro homem tetraplégico do mundo a se tornar pai,
graças a um método que ele mesmo desenvolveu. Foi sobre essas conquistas, sua
história e a saúde de pessoas com lesão medular que o médico conversou por
pouco mais de uma hora com o Correio, ao visitar Brasília na semana passada,
integrando uma comitiva sueca de políticos e empresários que esteve no Brasil.
Como foram os dias após o acidente
que o deixou tetraplégico?
Muito difíceis. Eu e minha mulher decidimos manter o
casamento, mas muitos foram contra. O CEO do hospital onde eu trabalhava chegou
a ligar para meus pais sugerindo que eles me impedissem de me casar. Eu estava
intacto do ponto de vista cognitivo, então ele não tinha o direito de fazer tal
coisa. Eu poderia ter processado ele, mas não pensei nisso aquela hora. O
momento mais importante, porém, aconteceu uma semana depois do casamento. Fazia
três semanas que eu tinha sofrido o acidente e chegaram os feriados de verão.
Eu queria viajar, mas o hospital não queria me liberar. Como eles não podiam me
manter preso, pedi para que amigos com quem eu trabalhava me transportassem de
helicóptero até o local onde minha família estaria naquela semana. Foi a viagem
mais importante da minha vida, porque finalmente eu senti o peso do que tinha
ocorrido. Eu chorei, chorei e chorei. E isso foi muito importante para
processar minha dor. Hoje, os médicos receitam pílulas para as pessoas e não as
deixam passar por esse processo, mas ele é necessário.
Qual é a abordagem de tratamento
feita na Fundação Spinalis, que o senhor fundou?
Hoje, nós temos 40 leitos e já atendemos 1,2 mil
pacientes. As pessoas que atendemos fazem primeiro um programa de três meses,
em que ficam morando ali. Buscamos ter os melhores profissionais para
ensiná-los a retomar suas vidas. Nós os ensinamos a como dirigir, se vestir, ir
ao banheiro, fazer sexo, mas, principalmente, os encorajamos a seguir com suas
vidas. Dos nossos funcionários, 15% são cadeirantes, e eles acabam servindo de
modelo para quem está participando de nosso programa. Depois, os pacientes
podem voltar sempre que precisam de ajuda e recomendamos que venham pelo menos
uma vez por ano para uma avaliação.
Como encorajar essas pessoas que
acabaram de sofrer um grande trauma?
No passado, as abordagens para pacientes com lesão medular
focavam principalmente o corpo, os danos físicos. Depois, passamos a nos
preocupar com o ambiente, se ele é inclusivo, se os lugares são acessíveis.
Hoje, sabemos que é importante nos preocuparmos também com os obstáculos
mentais que se criam nesses pacientes. Eles se perguntam: “Será que vou
conseguir?”. Precisamos ajudá-los a acreditar que sim, encontrar o que os
deixará motivados. Eu não acredito que alguém possa reabilitar outra pessoa. É
ela que precisa se reabilitar.
Qual é a maior dificuldade para uma
pessoa que acaba de sofrer uma lesão na medula?
É alcançar autonomia, o que exige trabalho. Veja, até hoje
eu levo cerca de uma hora e meia entre acordar e terminar de me vestir,
incluindo ir ao banheiro, me barbear… Apenas para vestir as meias são cinco
minutos, dois minutos e meio para o pé esquerdo e dois minutos e meio para o pé
direito. E não há como ser diferente. Eu tenho de saber que será assim e me
planejar. É preciso paciência e resistência, mas eu tenho autonomia. No meu dia
a dia, consigo realizar sozinho todas as tarefas que preciso cumprir. Se posso
ter ajuda, claro que aceito, sem problemas, mas é importante conquistar
independência.
Quais outros problemas são mais
comuns?
A dor neuropática e a incontinência são problemas para
grande parte dos pacientes. Essa dor é diferente da que você sentirá se eu
bater em seu braço. Ela é originada no sistema nervoso e é difícil conviver com
ela (a manifestação da dor pode dar a sensação de queimação, peso, agulhadas,
ferroadas ou choques). O controle da urina e das fezes também é um desafio. Por
exemplo, há dois anos, durante uma vigem de avião, defequei em minhas calças. É
uma situação constrangedora, que pode ser emocionalmente muito desgastante. E a
pessoa precisa estar preparada para lidar com eventos assim.
Chama a atenção como o senhor fala de forma natural sobre
assuntos que causam constrangimento nas pessoas.
É assim que devemos abordar esses assuntos, de maneira
direta, sem escondê-los.
Como o senhor conseguiu ter um filho?
Estudei muito sobre sexualidade porque, quando sofri o
acidente, foi dito para mim que eu não poderia ser pai. Para as mulheres
(com lesão medular) não há problema. Elas podem engravidar normalmente. Para os
homens, o problema era o acesso ao esperma. A produção de sêmen não se altera
e, principalmente depois do viagra, ter uma ereção também não é problema para a
grande maioria dos pacientes.
Os homens com lesão medular, porém, não têm orgasmo. Cerca
de 50% das mulheres têm, mas os homens, não. O que descobrimos foi que, com a
ajuda de vibradores, é possível provocar o reflexo da ejaculação. Eu comecei
esses estudos e desenvolvi um vibrador, o Ferticare, que ajuda esses pacientes
a ejacular e, assim, poder engravidar suas mulheres. Ele é um pouco diferentes dos
vibradores convencionais porque pode variar a amplitude e a frequência.
Demorou para a sua mulher engravidar?
Passamos sete anos tentando. Comprei todos os vibradores
que encontrei para testá-los em mim mesmo. Hoje, a técnica pode beneficiar 85%
dos homens com a medula lesionada. Assim como você, esses pacientes conseguem
pressentir que a ejaculação está próxima. Então, com o viagra, garantimos uma
ereção satisfatória e fazer o estímulo com o vibrador. Quando o homem sente que
está perto de ejacular, pode deixar o vibrador de lado e iniciar a relação com
sua parceira, ejaculando dentro dela.
Mesmo sem orgasmo, sexo continua
sendo importante para os homens?
Sim. Ele não sentirá o prazer do orgasmo que sentia antes,
mas notamos que, simbolicamente, é muito importante, tanto para o homem quanto
para sua parceira, ter uma relação sexual com penetração. Por isso, estimulamos
a prática.
O que o senhor veio fazer no Brasil?
Vim conhecer melhor o programa de acessibilidade do
governo brasileiro. Nosso embaixador no Brasil (Magnus Robach) achou que seria
interessante me apresentar às autoridades brasileiras relacionadas a essa
iniciativa. Eu me encontrei com sua ministra dos Direitos Humanos (secretária
Maria do Rosário) e ela me convidou para vir à Copa do Mundo em 2014. Eu disse
que virei, e ela me garantiu que todos os estádios serão acessíveis. Também vim
ver se consigo abrir portas a empresas suecas que desenvolvem ótimos produtos
para cadeirantes, especialmente cadeiras de rodas e cateteres, que, quando de
qualidade, diminuem o risco de infecção urinária, outro problema muito comum em
paraplégicos e tetraplégicos.
O senhor mencionou a Copa do Mundo no
Brasil. O senhor sabe dos planos do neurocientista Miguel Nicolelis de fazer
uma criança tetraplégica dar o ponta pé inicial do evento usando um
exoesqueleto conectado ao cérebro? O que o senhor acha de pesquisas assim?
Eu não gosto, porque elas podem dar a sensação de que a
cura está próxima, que os pacientes devem esperar por ela. Claro que avanços
tecnológicos são muito importantes para nós, mas, há 28 anos, quando sofri o
acidente, diziam para mim que a cura estava logo ali na esquina, mas não
chegamos à esquina até hoje. A promessa da cura faz com que as pessoas fiquem
em casa esperando por ela, presas ao computador, bebendo cerveja. No entanto, o
que elas precisam é sair, aprender a viver novamente, conquistar sua independência.
Fonte: Jornal
Correio Braziliense
Referência: Clippingmp e Blog Deficiente Ciente
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