Um mundo para todo mundo
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Cláudia Cotes quase não se cala. Fala alto. Apressado. Quer ser escutada. “Sacou que a gente veio ao mundo para isto?”, ela diz, dedos das mãos em V, o sinal de “paz e amor”. Cláudia não é hippie. Tampouco adolescente. Fonoaudióloga de 42 anos, mestre e doutora em linguística e mídia, ela ensina jornalistas de TV a se portar diante das câmeras. Desenvolve a dicção dos repórteres. Imprime emoção no noticiário. Mas sua missão de vida – o que ela diz dar sentido a sua presença na Terra – é outra. O sonho de Cláudia é ajudar a construir “um mundo para todo mundo”. Um lugar que inclua surdos, cegos, pessoas com deficiências intelectual ou física: “Manja assim?”.
Mãe de dois filhos, essa paulistana inquieta é a criadora do TeleLibras, o primeiro jornal brasileiro da internet traduzido para todos os públicos. Um programa informativo como outros, mas cujo compromisso vai além da notícia. É feito por (e para) deficientes. Tem audiodescrição e interpretação em Libras, linguagem de sinais usada por deficientes auditivos. Funciona assim: se o telespectador tem dificuldades para enxergar, pode imaginar a cena ao ouvir um relato detalhado do que está acontecendo no ambiente. Se não escuta, pode assistir pela linguagem de sinais. E nada daquelas janelinhas no canto inferior da TV com uma pessoa dentro. O apresentador surdo fica ao lado – e no mesmo plano – do que fala e ouve. Em tela cheia. Durante a gravação, o jornalista deficiente dá a notícia. Atrás da câmera, o intérprete traduz para a língua de sinais. Só então o repórter surdo copia os gestos. “Agora a gente não precisa mais pegar uma lupa para entender o que o intérprete diz”, afirma Paullo Vieira, um dos apresentadores do TeleLibras.
Vieira nasceu no silêncio. A mãe teve rubéola na gestação e a doença prejudicou seus ouvidos. O garoto cresceu em uma família convencional, despreparada para receber uma criança diferente. Até que ele conheceu a língua de Libras – e teve seu mundo ampliado. Aos 39 anos, Vieira tem uma agenda cheia. Trabalha, estuda, namora, é líder de movimentos de surdos e pai de um menino (que escuta normalmente). Vez ou outra, é reconhecido em eventos como apresentador do TeleLibras. “A gente ajuda a disseminar o conhecimento da língua de sinais e faz com que as pessoas aprendam assistindo”, diz ele, com ajuda do intérprete. “Isso reduz o preconceito.”
No Brasil, existem hoje cerca de 6 milhões de surdos e 5 milhões de cegos. São 11 milhões de pessoas praticamente excluídas dos sistemas de informação. “A mídia é cega, surda, muda e cadeirante”, afirma Cláudia. Daí o desafio do TeleLibras: quebrar as barreiras da comunicação. A ideia surgiu por acaso. Certa vez, ela soube por uma amiga surda que os deficientes auditivos não compreendem o noticiário da TV. O exemplo escolhido foi comovente. Um dia depois do ataque do 11 de setembro, um grupo de surdos teria chegado à escola e perguntado ao professor o que eram aquelas torres atingidas por aviões. “Meu, eu fiquei indignada. Precisava fazer alguma coisa por aquelas pessoas”, diz. Muitas delas são alfabetizadas na língua de Libras, cuja estrutura gramatical é simplificada e um tanto carente de palavras. A frase “Eu vou até sua casa”, para eles, transforma-se em “Casa vou”. Assim, acompanhar a legenda de filmes ou mesmo o closed caption (as legendas destinadas a deficientes auditivos da televisão) é difícil.
O convívio com a diversidade chegou cedo para Cláudia. Aos 2 anos, ela ganhou um irmão especial. Àquela época, pouco se falava em inclusão. Deficiência era tabu. Tanto era que seus pais não souberam de imediato que tinham um filho com síndrome de Down. O médico não contou. A descoberta aconteceu meses depois, porque o corpo da criança era molinho. “Aprendi a brincar diferente”, diz. E aprendeu muito mais. Acompanhou de perto o sofrimento da família, uma luta diária contra o preconceito. “As pessoas olhavam com cara feia para a gente. Como se fôssemos culpados.” Por recomendação da escola, o garoto foi morar num internato especializado em deficientes. Cláudia não conseguia compreender por que o mundo do irmão e o dela não eram o mesmo.
Adulta, virou escritora infantil. Sem planejar. Sua filha de 6 anos ia ser apresentada à filha surda de um amigo e Cláudia pensou em como explicar a ela a dificuldade da menina. Nasceu a ideia de sua primeira publicação. A personagem do livro, uma garotinha surda, vem ao mundo para ensinar aos amigos como pode ser bonito o som do silêncio. Cláudia lançou seus trabalhos em formatos diversos: impresso, com audiodescrição e em Braille. Falou sobre câncer, aids, surdez e outras deficiências. O universo do irmão, sem querer, acabou virando o dela. “Ele morreu no dia internacional dos deficientes, com 34 anos”, diz Cláudia. “Senti que tinha um compromisso com essas pessoas.”
Assim nasceu a Vez da Voz, uma ONG que, entre outros projetos, promove o TeleLibras. O jornal é feito por 23 profissionais, entre deficientes (cadeirantes, surdos, cegos, com síndrome de Down) e não deficientes. Todos os programas estão disponíveis para download de graça no site www.vezdavoz.com.br. O primeiro foi ao ar em 2006. Desde então, foram mais de 200. No início, eram feitos de forma amadora. Cláudia chegou a usar os lucros dos direitos autorais de seus livros para deixar o jornal mais profissional. Transformou seu consultório em estúdio de TV. Gastou R$ 22 mil em uma filmadora e um teleprompter, equipamento acoplado às câmeras que exibe o texto lido pelo apresentador de telejornal. Nem mesmo o quarto do filho escapou. Ela pintou uma das paredes para improvisar, em casa, uma sala de gravação. Tanta dedicação fez seu casamento balançar, sem cair.
Hoje, mais e mais surdos se informam pelo TeleLibras. “Sabe o que é um cara do interior da Bahia contar que vai até uma lan house só para ver o programa?”, diz. Quando o jornal foi ao ar, há quatro anos, o site tinha 3 mil acessos ao mês. Agora tem 25 mil. Sem contar a audiência dos outros portais que exibem os vídeos. Desde abril, os integrantes do TeleLibras – de apresentador a intérprete de sinais – recebem para trabalhar. O dinheiro vem da lei de isenção do ICMS. E o futuro promete mais. Cláudia está discutindo com uma emissora de rádio nacional a transmissão de sua programação pela internet, em linguagem de Libras. Questionada sobre como se imagina daqui alguns anos, Cláudia não economiza. “Quero ter uma televisão inclusiva na web”, ela diz. “Profissa, saca?”
Fonte: Projeto Generosidade - www.projetogenerosidade.com.br
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