Entrevista com Scott Rains
Compartilhe
Especialista em turismo, esse norte
americano é um dos principais consultores mundiais quando o assunto envolve
pessoas com deficiência e acessibilidade. Seus estudos trouxeram novo
entendimento à questão, fugindo da mera "adaptação". Apaixonado pelo
Brasil, já esteve várias vezes em nosso país, onde tem uma verdadeira legião de
amigos e seguidores.
Scott mora em San José, na Califórnia, o conhecido
"Silicon Valley". Aos 17 anos, fez a biopsia de um câncer na coluna
dorsal, que o deixou tetraplégico. No verão anterior à cirurgia, esteve no
Brasil como estudante de intercâmbio. Voltou 2 anos depois, em 1975, já como
cadeirante, com uma bolsa de estudos para a Universidade de São Paulo (USP).
Fez, inclusive, o primeiro workshop no país sobre “Desenho Universal em
Turismo”, na abertura do 3° Congresso Internacional sobre Desenho Universal:
"Projetando para o Século XXI", além de outras visitas.
Foi o fundador do Fórum Global em Turismo Acessível, e seus
artigos são reproduzidos em publicações especializadas de várias partes do
mundo. Como consultor em Turismo Inclusivo, esteve também em países como: Índia,
Austrália, Itália, Barbados, Tailândia, Geórgia e África do Sul. Foi um dos
organizadores da Segunda Conferência de Turismo Acessível Internacional e é
membro honorário da Rede Europeia para Turismo Acessível (ENAT), entre outras
atividades em que também atua, como: escritor, palestrante e consultor. Para
conhecer melhor o trabalho de Rains, acesse: www.RollingRains.com
Em entrevista exclusiva à Revista Reação, essa personalidade
de reconhecimento mundial no turismo e no movimento da pessoa com deficiência
fala de sua vida, seu trabalho e sua relação com o Brasil. Acompanhe:
Revista Reação - Como começou a se interessar por turismo
para pessoas com deficiência ?
Scott Rains - A verdade é que turismo “adaptado” não me
interessa. Falo de turismo inclusivo. Adaptar supõe uma norma que tem de ser
modificada para 23,9% dos cidadãos do Brasil. Em escala mundial, é como dizer
que um conjunto muito grande de pessoas fica fora do cotidiano dito normal, das
normas, do mercado, ou da vida social. Quando aceitamos a ideologia que
identifica a adaptação como uma forma de justiça, aceitamos com ela o
preconceito que nos desvaloriza, tanto como seres humanos quanto como
consumidores. Isso, sem falar nas consequências dessa visão para a arquitetura
e a prestação de serviços. Mais sútil e, por isso mesmo, praticamente
imperceptível para quem não faz parte da nossa comunidade é a falta de nossa
gente nas peças e campanhas de marketing na mídia. Essa ausência na
representação visual diz que não fazemos parte do mundo, que não estamos
incluídos entre os que têm responsabilidade pelo seu destino, o que impede a
existência de um pensamento voltado para tornar a vida no planeta uma
experiência agradável para nós.
RR - A questão do turismo é bastante discutida entre as
pessoas com deficiência, com muitos estudos para definição das melhores rotas,
hotéis acessíveis, transportes adaptados. Sua afirmativa é que o caminho não é o
turismo adaptado, mas sim o turismo acessível. Qual a diferença entre os dois
conceitos ?
SR- No setor do turismo, a aplicação do Desenho Universal em
todas as fases do desenvolvimento de produtos turísticos, serviços e
comunicação, bem como no desenvolvimento e marketing de destinos, é conhecida
como Turismo Inclusivo. Nesta época que antecede a Copa 2014 e Rio 2016, é
apenas esta abordagem da política de turismo e da gestão de destinos que pode
criar produtos com apelo para esse mercado global de 1 bilhão de pessoas.
Atualmente são publicados muitos artigos sobre essa realidade, o que é sem
dúvida importante para nós como viajantes. Acho, no entanto, mais importante
neste momento o aprofundamento das discussões - por meio de estudos acadêmicos
e técnicos - sobre o comportamento dos viajantes com deficiência e os processos
de decisão do mercado com relação às demandas desse segmento. No Brasil estamos
esperando os resultados da primeira pesquisa nacional sobre a comunidade de
pessoas com deficiências como viajantes. Meus parabéns aos integrantes do
governo que tiveram a clareza de visão para iniciar essa investigação,
necessária para que se implante no país um turismo verdadeiramente inclusivo.
Com uma pesquisa confiável, pode-se iniciar o gerenciamento de destinos, que
depende de um plano de turismo integral, direcionado para destinos que adotam
princípios e mandamentos do Desenho Universal.
RR - Qual a importância do Desenho Universal nessa questão
do turismo ?
SR - Os princípios do Desenho Universal são aplicados para
criar produtos, ambientes e comunicação a serem utilizados por todas as
pessoas, na maior extensão possível, sem necessidade de adaptação ou desenho
especializado. O modelo pressupõe que as pessoas com deficiência em geral e
aquelas que têm deficiências específicas semelhantes, possuem um comportamento
econômico similar. Por exemplo, as pessoas com deficiência irão reconhecer e
comprar produtos e serviços projetados para acomodar suas limitações em função
do corpo, desde que estes não mais as estigmatizem como diferentes. Estudos têm
mostrado que os viajantes com deficiência tomam decisões de viagem baseados
mais nas recomendações boca-a-boca do que qualquer outro segmento do público
viajante. Um estudo feito nos EUA em 2002 e repetido em 2005 mostrou que
americanos com deficiência gastam a cada ano 13,6 bilhões dólares somente em
viagens. A pesquisa mostra que eles poderiam dobrar a frequência de suas
viagens se a indústria adotasse as práticas de turismo inclusivo. Para mais
informações, sugiro o livro da minha colega Silvana Cambiaghi, em português:
“Desenho Universal - Métodos e Técnicas para Arquitetos e Urbanista", e o
novo livro didático: “Universal Design: Creating Inclusive Environments”, dos
meus colegas Edward Steinfeld e Jordana Maisel.
RR - O que pode representar o turismo para as pessoas com
deficiência ? É diferente em relação a pessoas sem deficiência ? Qual a
importância da acessibilidade nesse caso ?
SR - Nosso comportamento "natural", seja social ou
econômico, é distorcido pela falta de acessibilidade, que nos exclui da
participação plena como cidadãos. Lembro ter dito uma vez que: “Qualquer viagem
é um esporte radical para quem tiver deficiência”. Viajamos para nos testar
contra o desafio de sair nossa zona de conforto, mas queremos escolher desafios
interessantes, outros que não sejam os da viagem, como problemas ao embarcar no
avião, entrar no banheiro ou ainda, para quem estiver surdo, sobreviver à falta
de sinais de emergência visual no quarto do hotel. É uma decisão perigosa para
uma empresa abrir mão dos lucros que podem ser auferidos em um segmento do
mercado que cresce tão rapidamente como o turismo de pessoas com deficiência.
Turismo é, antes de mais nada, um negócio, vive do lucro. Deixar de pensar em
um quarto da população como consumidora dos produtos de turismo define, desde o
principio, que resultado obtido nesse negócio não vai ser adequado.
RR - Já viajou por muitos países a trabalho e por lazer.
Quais as melhores experiências em turismo e acessibilidade que já encontrou ?
SR - Existem lugares que já descobriram como desenvolver um
turismo inclusivo. As ilhas Canárias, a cidade de Takayama no Japão e vários
lugares no Canadá são bons exemplos. No Brasil, temos Socorro e Brotas (SP) e
Gramado (RS). Mas o destino que melhor sabe proporcionar o que queremos é a
Disneylândia ! Pode-se reclamar que eles têm a vantagem de possuir controle
total sobre seus ambientes, e é verdade. Fazem isso de propósito. Praticam um
gerenciamento de destino inclusivo. Têm a atitude correta – oferecer delícias,
proporcionar deleite, ultrapassar as normas e expectativas, projetar uma
experiência integral para todos. Até inventaram uma palavra para quem desenha
isso: “Imagineer.” Gosto disso. Eles praticam o que dizemos na indústria: “Não
vendemos uma simples viagem. Vendemos é imaginacão”.
RR- Sua relação com o Brasil é antiga, desde os tempos de
estudante. Quantas vezes já esteve em nosso País e qual sua avaliação sobre a
acessibilidade por aqui ? Mudou muito nos últimos anos ?
SR- Estive 7 vezes no Brasil, inclusive em visitas de vários
meses. Deixei minha bolsa de estudo na USP em 1975, em São Paulo/SP, por falta
de acessibilidade e pela falta de desejo da universidade de corrigir essa
injustiça na época. Mas muitas coisas estão melhorando. Programas como o “Viver
sem Limite” do governo, mostram o caminho certo, sem contar o erro estrutural
de não incluir o Ministério do Turismo na gerencia nacional do projeto.
Parabéns a um governo que está respondendo ao ímpeto do nosso movimento. Além
disso, no setor privado, houve o entendimento de pessoas com deficiência como
sendo clientes e consumidores, o que vai facilitar uma inclusão social
sustentável.
RR - Grandes eventos ocorrerão no Brasil proximamente, a
Copa do Mundo de Futebol em 2014, as Olimpíadas e Paralimpíadas em 2016. O que
é preciso fazer em termos de acessibilidade para receber bem as pessoas com
deficiência que viajarão para o Brasil ?
SR - Nesse caso, concordo com meu amigo Augusto Fernandes,
que é responsável pela acessibilidade no Comitê Brasileiro da Paralimpíada Rio
2016: inicialmente é preciso que todas as obras construídas para os jogos sejam
acessíveis e cumpram os as exigências nacionais e internacionais de
acessibilidade. Em um segundo momento, não menos importante, é preciso adequar
toda a infraestrutura já existente e que servirá para os jogos. Isto envolve
desde o sistema de transporte, vias públicas, acomodações e as instalações
esportivas. Também é de suma importância treinar as pessoas para operar todo
esse sistema e ao mesmo tempo conscientizar a população, despertando uma nova
visão e atitude perante as pessoas que possuem alguma deficiência ou mobilidade
reduzida. Veremos como o ambiente e atitude, juntos, vão servir para liberar o
poder reprimido do povo brasileiro com deficiência. Servir bem o nosso cidadão
é 80% do necessário para receber bem as pessoas com deficiência que viajarão
para o Brasil. O genial desse enfoque é que somos nós, como turistas
estrangeiros, que faremos retornar custos iniciais para o Brasil na forma de
lucros.
RR - Quais são seus planos em relação ao Brasil ?
SR - Meu plano em relação ao Brasil é fazer um tour
jornalístico pelos estados sedes dos jogos da Copa 2014. Pretendo repetir a
viagem que fiz pelas províncias da África do Sul, que sediaram a Copa do Mundo
2010. Quero contar, antes do Rio 2016, essa história do que é conhecer este
grande e belo país.
RR - Qual sua mensagem final aos leitores brasileiros ?
SR - Evitem os erros que fizemos nos EUA. Como disse
Bertrand Russel: “Por que repetir velhos erros quando há tantos erros novos
para cometer ?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu Comentário é muito importante para nós.