Diretora-executiva da Rede Sarah fala sobre a perda do “eu”
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Lucia
Willadino Braga é Ph.D. em neurociências. Conhece como poucos a cabeça dos
outros. A especialização em cérebro, no entanto, não lhe prejudicou enxergar as
pessoas em seu conjunto. Mais que isso, a ver o que têm de melhor. Essa é uma
receita que recupera feridos, cura doenças da mente, diminui a angústia no
coração de acidentados e ajuda a recuperar o corpo. Lucinha, como é tratada
carinhosamente por seus colegas e pacientes, é presidente e diretora-executiva
da Rede Sarah, uma referência na prevenção de acidentes, entre eles os de
trânsito, e na reabilitação das vítimas do asfalto, cujas estatísticas se
emparelham a mortos e feridos em guerras.
Nesta
entrevista ao Correio, a neurocientista fala com a experiência de quem todos os
dias lida com os sobreviventes da batalha nas pistas. Quase metade dos
pacientes que deram entrada este ano no Sarah são vítimas do trânsito. A
maioria delas jovens, homens, motociclistas. Muitas vezes enfrentam o
adversário (o caminhão, um carro, o poste) com o próprio corpo. Lucinha
decreta: “Pilotar motos sem capacete é uma tragédia”. Essas pessoas, muitas
vezes, perdem um membro, o movimento de braços, pernas, ficam paralisadas de um
lado, mancam, tremem para o resto da vida. Mas em meio a enfermidades tão
graves, a médica avalia que pior é deixar no asfalto o próprio “eu”.
“É muito
ruim ficar paraplégico, é muito ruim ficar tetraplégico, perder um braço. Mas,
ficar sem o eu é ainda pior. Com pancadas graves no cérebro, você passa a não
se reconhecer. Seus amigos e sua família passam a não te reconhecer”, afirma.
Há como evitar danos tão drásticos. O cinto de segurança, a cadeirinha, o
respeito à velocidade da via são medidas universais para diminuir o risco de
tragédias. Mesmo quando o pior acontece, há chances de se voltar a ter uma vida
com qualidade. “A gente trabalha olhando para o que ficou, o que restou, porque
muitas vezes se foca a deficiência, o que aquela pessoa não tem. Temos ganhos
incríveis quando esse trabalho é inverso, quando elevamos a autoestima e mostramos
do que elas são capazes”, diz a médica, cujo trabalho em Brasília e no Brasil é
referência para o mundo.
O Sarah é
uma referência no tratamento de pessoas que sobrevivem a tragédias no asfalto.
Qual o perfil das pessoas que se tornam pacientes da rede?
Quarenta e cinco por cento dos pacientes
internados no Sarah são por acidente de trânsito. Em 2000, eram 38%. Agora,
esse índice é maior, uma prova de que esses desastres estão aumentando. Em
geral, são jovens do sexo masculino. Os acidentes com motocicleta sobem
violentamente. Esses são os mais graves. E as lesões mais comuns são no cérebro
e na medula, o que pode levar a uma paraplegia, com a perda dos movimentos
inferiores ou a tetraplegia, quando além das perdas, perde-se parte dos
movimentos dos braços e, dependendo da altura da pancada, todo o movimento dos
membros superiores. As pessoas pensam muito em lesões ortopédicas, mas as
estatísticas mostram que não são tão grandes e, nesses casos, as sequelas são
mais simples de serem tratadas.
Como é recuperar essas pessoas que sofreram traumas tão profundos no corpo, na cabeça e na mente?
A gente faz todo um processo de reabilitação
tentando recolocar a pessoa em sua vida. E há um índice grande de pessoas que
voltam a trabalhar, a estudar, a serem produtivas. É um trabalho intenso.
Quantos
profissionais estão envolvidos na reabiliação de uma pessoa acidentada?
São muitos. Um neorologista, um
neurocirurgião, um ortopedista, às vezes um pediatra e um neuropediatra,
fisioterapeuta, psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, biólogo,
farmacêutico, um professor de educação física, professores hospitalares,
neuropsicólogos. E a gente no Sarah trabalha de maneira muito integrada.
Ao longo
da vida, as pessoas desenvolvem habilidades, aprendem uma profissão. Muitas, no
entanto, chegam aqui com 50%, 30%, 10% de suas capacidades porque se envolveram
em graves acidentes. Como fazer com que se agarrem à perspectiva de uma vida
com limitações?
No Sarah,
a gente trabalha olhando para o que ficou, o que restou, porque muitas vezes se
foca a deficiência, o que aquela pessoa não tem. Temos ganhos incríveis quando
esse trabalho é inverso. Se você me perguntar, medir com uma régua o que eu não
tenho, vai descobrir deficiências. ‘Lucinha, você sabe dançar balé?’ Não. Então,
a Lucinha é deficiente no balé. ‘Sabe tocar violino?’ Não. A Lucinha é
deficiente no violino. Tentamos enxergar do que as pessoas são capazes,
elevando sua autoestima. Esse é um método que tenho mostrado no mundo todo: a
reabilitação no contexto, na vida. Se é um arquiteto, então vamos trabalhar com
a arquitetura. O Joãozinho 30, a paixão dele era o carnaval. Ele foi nosso
paciente, enfatizamos o carnaval no tratamento dele. O Herbert Vianna foi
tratado por meio da música. Tentamos eliminar o estresse, jogar com o positivo.
Agora, nos preocupa muito algumas situações mais difíceis de contornar.
Por
exemplo…
Quando as lesões são no cérebro, a gente conta
com a plasticidade neuronal, que é a capacidade de outras partes do cérebro não
lesadas assumirem a função daquela que foi perdida. Mas, nos acidentes de
trânsito mais graves, ocorre muitas vezes o trauma no lóbulo frontal, que é a
parte da frente onde ficam armazenadas as áreas de planejamento, do processo
decisório, da capacidade de inibir ou desinibir o comportamento. Mexe com a
impulsividade, com a agressividade, então há repercussões em todas essas ações
cognitivas. Se a lesão for próxima ao lóbulo esquerdo, na região de Broca, vai
afetar a fala. Danos no lóbulo temporal (nas partes laterais) atingem os
movimentos, as chamadas hemiplegias. Por isso, pilotar motos sem capacete é uma
tragédia. E, mesmo com o capacete, às vezes não é possível proteger o lóbulo
temporal, justamente a parte mais delicada, mais fininha da cabeça. Quando
ocorrem essas lesões, é muito comum a pessoa perder a memória, que fica no
asfalto.
Perder os
movimentos é grave. Quando o cérebro é atingido, há risco da perda da
consciência, da personalidade. Em uma tragédia, há como apontar o que pode ser
pior?
É muito ruim ficar paraplégico, é muito ruim
ficar tetraplégico, perder um braço. Mas ficar sem o eu é ainda pior. Com
pancadas graves no cérebro, você passa a não se reconhecer. Seus amigos e sua
família passam a não te reconhecer. A gente tem uma imagem de determinada pessoa
que é de pavio curto, por exemplo, e, de repente, ela fica totalmente apática,
porque a região da iniciativa foi atingida. Aí, tem o outro que é super
bonzinho, doce, e fica super agressivo. A questão da desinibição sexual, que
também é uma questão muito complicada para a família. As pessoas aprendem a ter
certo comportamento na família, valores, ética. De repente, a pessoa bate a
parte do controle, do comportamento, e aí uma pessoa que era educada passa a
assumir outra postura. Tive uma paciente que era economista e sofreu um
acidente de trânsito. Ela ficou com uma discalculia, porque afetou a área do
cálculo. É um desses casos em que as pessoas costumam dizer “mas vive-se bem
sem cálculo”. Não, não se vive.
Especialmente
se for uma economista…
Não. Ninguém vive bem sem cálculo. É só
imaginar a gente precisar pegar um táxi daqui para o aeroporto, o taxista te
cobrar R$ 15 mil e você, se tiver discalculia, vai fazer o cheque e pagar,
porque não tem noção. Eu perguntava para a minha paciente; “Se o taxista lhe
cobrar R$ 15 mil, você vai achar caro?’ Ela dizia: “Não”. Eu perguntava;
“Quanto você acha que eu peso?”. Ela dizia: “Uns 200kg”. Eu dizia: “Não, eu não
sou tão gorda assim”. E ela respondia; “Não estou chamando você de gorda, você
é magrinha, deve pesar uns 10kg”. Não se trata de cálculo sofisticado. É poder
lidar com o troco. Isso é uma das coisas que se perde em tragédias no asfalto.
É possível
estimar quantas vítimas do trânsito chegam ao Sarah com lesões no cérebro?
Das internações, 24% sofreram traumatismo
cranioencefálico (TCE). É muita gente. Metade desse percentual é de pacientes
que sofreram lesões ortopédicas. Dos pedestres que chegam para a reabilitaçãso
nos nossos hospitais, 39% chegam com TCE. É o que chamo de lesões invisíveis,
porque se alguém está numa cadeira de rodas, os outros estão vendo a pessoa com
deficiência, a quem vão enxergar com um olhar diferenciado, com uma
conscientização social. A vaga de deficiente é um exemplo dessa
conscientização. Agora, se tenho uma lesão cerebral que não afeta meu movimento
e minha fala, a minha lesão é invisível para a sociedade.
Como,
então, proteger o cérebro da violência nas pistas?
O cinto de segurança protege, o airbag também.
A cadeirinha é uma segurança para as crianças, a elevação do assento também
para as pessoas de baixa estatura. As estatísticas mostram que um número enorme
de pessoas ainda não usa o cinto. O capacete tem que ser de boa qualidade, não
dá para economizar. A pessoa está totalmente fragilizada. É ela contra um
caminhão, contra o asfalto. Moto eu não recomendo de jeito nenhum. Quando eu
era mais jovem e não tinha esses conhecimentos, até andava, mas hoje não quero
passar nem perto de moto. Tenho acompanhado a série de reportagens sobre o trânsito
(publicada pelo Correio desde o último domingo). Disse ao meu filho que pegou a
estrada para o verão. “Meu amigo, não deixa o cérebro no asfalto, não tenha
pressa”. É preferível ficar atrás daquele caminhão o tempo que for preciso. Se
estiver irritado, calma.
Como
convencer as pessoas de que não vale a pena se arriscar no trânsito?
Fazendo essa conscientização por meio das
crianças. Por isso a gente implantou e faz parte do contrato de gestão da rede
Sarah o programa de prevenção. Entre os objetivos de o Sarah existir está a
prevenção de acidentes. Trazemos as crianças das escolas públicas e privadas
durante todo o ano. Só em 2011, foram 110 mil alunos de 4ª à 8ª séries. A gente
começou trabalhando com adolescentes. Mas os adolescentes já não ouvem muito o
que os adultos falam. Já a criança tem uma atenção. É nessa fase que a gente os
fisga, entre 10 e 12 anos, quando têm as operações mentais para entender, ainda
não entraram no período tão rebelde e registram que se não usarem capacete
ficarão com lesões no cérebro, se não usarem o cinto de segurança vão se
machucar muito, podem morrer.
Uma das reportagens sobre os órfãos do asfalto mostrou que o Poder Público investe na educação no trânsito apenas 2% da sua receita com multas. A senhora confia que aplicação mais generosa para a formação de jovens e crianças diminuiria as estatísticas de morte no trânsito?
É nosso foco, é no que acreditamos. Já conversei sobre esse assunto em reuniões ministeriais. A presidente Dilma lançou um novo programa de reabilitação. No bojo da discussão, está a educação no trânsito. No Sarah, formamos 110 mil crianças, o que é muito, mas temos de pensar em termos de Brasil.
Todos os que se acidentam são vítimas. Mas a criança não tem poder de decidir a velocidade do carro, se vai ultrapassar ou não, até mesmo se será transportada em uma cadeirinha ou ficará solta. É, muitas vezes, vítima duas vezes. Como lidar com esses seres tão frágeis?
Com a informação. Queremos formar aquele filho que entra no carro e fala; “Pai, bota o cinto, porque sem cinto eu não vou”. O programa de prevenção é muito importante nesse sentido, até porque hoje a criança é mais ouvida na sociedade. Ela, muitas vezes, é quem chama a atenção para que o adulto não fale ao telefone, não corra, respeite a velocidade da via. “Pai, está escrito 60km/h e você está a 70km/h”. As crianças são fantásticas, temos que trabalhar com elas para a multiplicação desses ensinamentos. Me chama muito a atenção no Sarah aquelas pessoas que não querem perder tempo. Você resolve falar no celular enquanto dirige para o trabalho porque quer ganhar um minuto. Depois perde seis meses, um ano ou uma vida inteira se reabilitando.
Fonte: Correio Brasiliense
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