Lei 8.213/91 - Obrigatoriedade de contratar e de criar meios eficazes para tanto - por Ricardo Tadeu Marques da Fonseca
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Considerando
a grande repercussão social no meio empresarial, judiciário e das próprias
pessoas com deficiência, decorrente do argumento reiterado de que as pessoas
com deficiência não detêm qualificação para ingressar no mercado de trabalho e
de que as empresas não devem suportar este ônus que decorre de ineficiências
das políticas públicas, enquanto professor e cidadão que participou da elaboração
do texto da Convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência em
2006, não poderia me furtar a oferecer uma manifestação de caráter doutrinário
e meramente contributivo relativa ao assunto em pauta, qual seja, a contratação
de pessoas com deficiência (PcD) por empresas com 100 e mais empregados.
Vale
dizer antes de mais nada, que a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência trouxe institutos que se caracterizam como instrumentos
jurídicos hábeis a tornar concreta a fruição por esse grupo, de cerca de 600
milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a OMS – Organização Mundial da
Saúde, de direitos humanos básicos. O mencionado tratado foi ratificado pelo
Brasil com aprovação pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº
186, de 9 de junho de 2008, promulgado pelo Presidente da República por
intermédio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, e foi incorporado à
Constituição do Brasil (CF, art. 5º. § 3º). Como já pude me pronunciar, em
artigo intitulado: “O novo conceito constitucional da pessoa com deficiência:
um ato de coragem”, e que compõe a obra “Manual dos Direitos das Pessoas com
Deficiência”, bem como a Revista do Tribunal do Trabalho da 2ª Região:
“Os
impedimentos de caráter físico, mental, intelectual e sensorial são, a meu
sentir, atributos, peculiaridades ou predicados pessoais, os quais, em
interação com as diversas barreiras sociais, podem excluir as pessoas que os
apresentam da participação na vida política, aqui considerada no sentido amplo.
As barreiras de que se trata são os aspectos econômicos, culturais,
tecnológicos, políticos, arquitetônicos, comunicacionais, enfim, a maneira como
os diversos povos percebem aqueles predicados. O que se nota culturalmente é a
prevalência da ideia de que toda pessoa surda, cega, paraplégica, amputada ou
com qualquer desses impedimentos foge dos padrões universais e por isso tem um
"problema" que não diz respeito à coletividade. É com tal paradigma
que se quer romper”.
A
despeito da consideração de que as empresas agem com boa fé ao adotar os
mecanismos usuais para contratação de pessoas com deficiência como anúncios em
jornais, buscas em cadastros preexistentes ou formação profissional genérica
pelos métodos tradicionais, sem sucesso, esta, a boa fé objetiva, só restaria
plenamente demonstrada, ao meu sentir, caso as empresas implementassem
programas eficientes de qualificação, inclusive direcionados aos aprendizes com
deficiência, tendo em vista que a Lei 11.180/2005, alterando o art. 428 da CLT,
possibilita aprendizagem de PcD sem limite de teto etário.
A
Lei 12.470/2011, por sua vez, faculta a cumulação do benefício de prestação
continuada com o salário de aprendiz por até 2 anos.
Acrescento
o consabido fato de que a Lei 10.097/2000 faculta o contrato de aprendizagem
com a intermediação de organizações não-governamentais devidamente habilitadas
para tanto e de que a formação profissional de PcD tem sido, há décadas, objeto
de especialização de entidades formadas de e para pessoas com deficiências, eis
que o próprio Estado e as instituições a ele conexas direta ou indiretamente
sempre se olvidaram desse grupo vulnerável, insisto, a vulnerabilidade aqui
decorre exatamente do isolamento social que até aqui o caracterizou. Desse
modo, o afinco dos empregadores voltado à realidade dos fatos no sentido de
cumprir não só a Lei 8.213/91, mas o que estabelece a própria Constituição
Federal, certamente viabilizaria a contratação dessas pessoas cumprindo as
cotas de ordem pública.
Logo,
não é crível que a mera exigência de qualificação imposta pelo mercado possa
servir de argumento para desonerar a empresa da obrigação que decorre do
princípio constitucional contido no artigo 1º concernente ao valor social da
livre iniciativa e do trabalho, bem como do artigo 27 da própria Convenção da
ONU, que elevou a política afirmativa em questão ao patamar mais elevado do
ordenamento pátrio.
A
mera publicação de anúncios de oferta de empregos a candidatos com deficiência
não pode ser utilizada como argumento para a ausência do preenchimento de tais
vagas. Há que se empreender um esforço mínimo para atingir eficazmente a plena
igualdade entre essas pessoas, como a seguir será demonstrado.
A
atenção aos grupos vulneráveis decorre do princípio universalmente aceito de que
todo ser humano nasce livre e igual em dignidade e direitos e, no dizer de
Boaventura de Sousa Santos: “temos o direito a ser iguais quando a diferença
nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza”. O artigo 2 da Convenção, nesse sentido, define, entre outras
coisas, a discriminação como se segue:
"Discriminação
por motivo de deficiência "significa qualquer diferenciação, exclusão ou
restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar
o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos
âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange
todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;”
Assinalo
que a última parte deste item 3 do artigo 2 afirma que a recusa de adaptação
razoável configura plenamente a discriminação. A ausência da participação de
pessoas com deficiência em locais cotidianos da sociedade, tais como clubes,
escolas, empresas e atividades de lazer evidencia essa diferenciação negativa.
Quando se constata a recusa em providenciar adaptações necessárias, ainda,
também restará evidente a discriminação. Tal conceito é assim definido pela
Convenção:
"Adaptação
razoável" significa as modificações e os ajustes necessários e adequados
que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada
caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou
exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais;”
A
palavra “adequado”, obviamente, deve ser interpretada como eficaz, realista,
eficiente etc. O contrato de aprendizagem por intermédio de organizações
qualificadas para e por pessoas com deficiências certamente não é oneroso, eis
que o salário do aprendiz é o mínimo/hora, o fundo de garantia é de 2% e se
trata de contrato por prazo determinado, necessariamente.
Lembro,
ademais, que as empresas em questão, via de regra, necessitam preencher cota de
aprendizes, e frequentemente não logram este intento também de ordem pública.
A
resistência empresarial para formar, empregar, e consequentemente incluir as
pessoas com deficiência no mercado de trabalho, oferecendo-lhes uma vida mais
digna e igualitária, é defendida em dois argumentos base, quais sejam, a falta
de preparo e a baixa produtividade de tais pessoas. Esses argumentos, todavia,
são totalmente falaciosos. Como mencionei no citado artigo, referindo-me aos
anos em que atuei como Procurador do Trabalho:
“Com
efeito, constatei que a adoção de medidas de treinamento das pessoas com
deficiência, por intermédio de convênios com os Serviços Nacionais de
Aprendizagem, bem como com organizações não governamentais especializadas na
formação profissional desses trabalhadores, alcançou pleno êxito. A alta
produtividade dos trabalhadores com deficiência é atestada pela unanimidade dos
empresários com quem tive contato nos inquéritos que presidi, em audiências
públicas ou em eventos que discutiram o tema. Observam os empregadores,
igualmente, grande motivação na equipe, que, ao vencer os tabus iniciais, passa
a ter os colegas com deficiência como referência de superação e solidarismo. As
empresas, finalmente, adicionam a sua imagem institucional grande estima
perante os consumidores e o público em geral. Insisto: essa opinião é unânime
em relação àquelas empresas que superaram a resistência ao cumprimento da
norma.”
Concluo,
por todo o exposto, que o conceito atual de pessoa com deficiência,
constitucionalmente adotado pelo Brasil por força da ratificação da Convenção
Internacional da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, supera o
aspecto clínico de cada indivíduo. Assim, traz as limitações para a sociedade,
que deve providenciar todas as adaptações necessárias para que tais pessoas
exerçam seus direitos da maneira mais efetiva possível. A obrigação da
iniciativa privada, portanto, não está apenas em contratar, mas também em criar
meios para a preparação técnica das pessoas com deficiência habilitadas e
reabilitadas para atender à legislação.
Reitero
que o artigo 27 da Convenção da ONU, também norma constitucional, respalda tal
argumento, o de que as empresas devem participar do processo de habilitação
desses cidadãos por meio do contrato de aprendizagem, antiga e respeitável
instituição do ordenamento celetista e certamente operável a baixíssimo custo.
Sublinho, finalmente, que a pessoa com deficiência contratada como aprendiz
comporá exclusivamente a respectiva cota. Ao cabo da habilitação, passará, só
então, efetivamente a compor a cota prevista pela Lei 8.213/91.
Ressalto,
para tanto, a necessidade de que se superem as barreiras sociais, políticas,
tecnológicas e culturais.
*
Ricardo Tadeu Marques da Fonseca - Desembargador do Tribunal Regional do
Trabalho do Paraná. Professor Universitário, ex-Advogado, ex-Procurador
Regional do Ministério Público do Trabalho. Especialista e Mestre em Direito do
Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo e Doutor em
Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
-
FERRAZ, Carolina Valença et. al. (coord.). Manual dos direitos da pessoa com
deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 19-32.
-
Revista do Tribunal do Trabalho da 2a Região, no. 10/2012, pp. 45-54. São
Paulo: Tribunal Regional do Trabalho da 2 a. Região.
-
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Por uma concepção multicultural de direitos
humanos. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (Org). Reconhecer para libertar: os
caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, p. 458.
-
Participei da elaboração de diversos Termos de Ajustamento de Conduta bem
sucedidos envolvendo organizações do terceiro setor e o próprio Sistema S,
aquelas subsidiando as peculiaridades necessárias para implementação do
trabalho deste. Também, convênios apenas com entidades do terceiro setor,
devidamente qualificadas para o mister.
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